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20/09/2019

Adoção da Convenção nº 190 e Recomendação nº 206 pela OIT e o enfrentamento da violência e assédio no trabalho

Em junho deste ano, no encerramento da 108ª Conferência Internacional do Trabalho que comemorou os 100 anos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Genebra, Suíça, foi aprovada a Convenção nº 190 e uma Recomendação complementar[1] que versam sobre o combate à violência e ao assédio local de trabalho[2].

A OIT, que se consolidou como organismo fundamental para a valorização do trabalho humano e para o estabelecimento de normas internacionais que orientam as relações trabalhistas sob forma de Convenções, Protocolos, Recomendações, Resoluções e Declarações, reconhece com a aprovação da nova Convenção que práticas como violência e assédio no trabalho implicam em violação ou abuso de direitos humanos e ameaça à igualdade de oportunidades, incompatíveis, portanto, com o trabalho decente[3].

O documento expressa que a violência e o assédio no trabalho não podem ser tolerados, vez que afetam a saúde psicológica, física e sexual das pessoas, sua dignidade e seu convívio familiar e social, o que reforça o compromisso do organismo em promover o futuro do trabalho baseado na dignidade e no respeito[4].

A OIT já aprovou outras normas que consolidam sua preocupação com a violência e com o assédio no trabalho. Por exemplo, a Convenção nº 100, de 1951[5], ratificada e promulgada pelo Brasil em 1957[6], trata do princípio da igualdade de remuneração para trabalho de igual valor; a Convenção nº 111, de 1965[7] e ratificada pelo Brasil em 1968[8], dispõe sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão; e a Convenção nº 156[9], que entrou em vigor em 1993, mas ainda não ratificada pelo Brasil, aborda a igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres no trabalho com encargos de família.

Também a Convenção nº 155, de 1981[10], sobre segurança, saúde dos trabalhadores e meio ambiente, ratificada pelo Congresso Nacional em 1992 e promulgada em 1994 no Brasil[11], estabelece em seu artigo 3º que "saúde” no trabalho abrange não só a ausência de afecção ou doenças, mas também os elementos físicos e mentais diretamente relacionados com a segurança no trabalho. Logo, se o assédio causa danos à saúde mental e física dos trabalhadores, tal norma já visava evitá-lo nos locais de trabalho[12].

A Convenção nº 190 é a primeira aprovada desde 2011, contando com 439 votos a favor, 7 contra e 30 abstenções[13], sendo que sua repercussão vem se acentuando principalmente após o surgimento do movimento #MeToo[14] e dos assustadores números de morte por excesso de trabalho (karoshi) no Japão[15]. O Brasil, como Estado, absteve-se da votação.

A Convenção foi acompanhada pela aprovação da Recomendação nº 206, que, por sua vez, propõe princípios reitores mais definidos sobre a forma como a norma poderia ser aplicada, indicando, por exemplo, quais medidas devem ser adotadas para que sua finalidade seja atingida.

Os referidos instrumentos adotam enfoque prático ao definirem violência e assédio no meio ambiente de trabalho como um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis que causem ou que são suscetíveis de causar danos físicos, psicológicos, sexuais e econômicos no meio ambiente de trabalho.

Ainda, a Convenção apresenta uma grande preocupação com a violência e assédio em razão de gênero, que abrange as práticas que são dirigidas a pessoas em razão do sexo ou gênero ou que afetam de maneira desproporcional as pessoas de um sexo ou gênero determinado.

Convém destacar que o âmbito de proteção da referida Convenção é amplo, amparando trabalhadores independentemente da situação contratual, incluindo, portanto, voluntários, estagiários, aprendizes, os que não estão mais trabalhando e os que estão à procura de trabalho, aplicando-se aos setores público e privado, de economia formal ou informal, em zonas rurais ou urbanas[16].

As previsões se destinam ao tratamento de atos que envolvem abuso físico, intimidação, ameaças, assédio sexual, entre outros, e reconhecem que as violências podem ocorrer fora do espaço físico do trabalho, como instalações sanitárias, lugares onde o trabalhador ou trabalhadora fazem pausa, refeições, treinamentos ou viajam, sendo verificadas até mesmo por meio da tecnologia da informação e comunicação, em rede sociais e aplicativos, por exemplo.

Especificamente no que se relaciona às questões de gênero, além do recorte que envolve o assédio sexual, a proteção alcança também atos de clientes, prestadores de serviços, pacientes.

Do mesmo modo, cabe destacar ainda que foram abordados os efeitos da violência doméstica no mundo do trabalho, conferindo tratamento especial às vítimas, trazendo medidas que podem incluir licença ou que seja instaurada modalidade de trabalho flexível para elas.

O instrumento internacional também dispõe que deve ser garantido que todo trabalhador ou trabalhadora tenha o direito de se retirar de uma situação que representa perigo iminente e grave para sua vida, sua saúde ou sua segurança em razão de violência e/ou assédio, sem sofrer represálias.

A Convenção entrará em vigor 12 meses após a ratificação de pelo menos 2 Estados Membros da OIT, mas, de todo modo, suas disposições poderão ter alcance com ampla divulgação, além de servir como horizonte para a interpretação dos tribunais no julgamento de casos e inclusive como fonte de reivindicações sindicais e individuais, já que as normas da Convenção são compatíveis com as previsões constitucionais.

Caso ratifique a Convenção, o Brasil assumirá o compromisso de respeitar, promover e assegurar ações que visem a eliminação e prevenção da violência e abuso no trabalho, prevendo sanções e velando para que as vítimas tenham acesso à reparação e medidas de apoio, vez que a norma aqui passa a ter validade jurídica. Destaca-se que se aprovada com o quórum constitucional, a Convenção ganha titularidade de norma constitucional[17]. Seria uma importante mudança no tratamento da questão, visto que, conforme pesquisa realizada em 2015, metade dos brasileiros já sofreu assédio no trabalho[18].

O Brasil deverá, ainda, adotar uma legislação que defina os direitos e obrigações dos trabalhadores e empregadores, exigindo dos últimos medidas apropriadas, de acordo com sua capacidade para controlar e prevenir tais práticas.

Por fim, vale ressaltar que se futuramente adotada a nova Convenção como core labour standard, suas disposições devem ser seguidas pelo Brasil obrigatoriamente, independentemente de ratificação[19], já que representaria um padrão mínimo de princípios e direitos que devem ser observados nas relações de trabalho[20].

 

Ingrid Sora

Advogada da área Trabalhista – Pereira Pulici Advogados



[1]ILO. Text of the convention concerning the elimination of violence and harassment in the world of work. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---relconf/documents/meetingdocument/wcms_711242.pdf.

[2]ANAMATRA. OIT adota convenção internacional sobre violência e assédio no local de trabalho. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/28324-oit-adota-convencao-internacional-sobre-violencia-e-assedio-no-local-de-trabalho.

[3]DE MELO, Raimundo Simão. OIT aprova a Convenção 190, sobre violência e assédio no trabalho. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-12/reflexoes-trabalhistas-oit-aprovaa-convencao-190-violencia-assedio-trabalho.

[4]ANAMATRA. Prevenção do assédio no ambiente de trabalho é tema de palestra da presidente da Anamatra. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/28693-prevencao-do-assedio-no-ambiente-de-trabalho-e-tema-de-palestra-da-presidente-da-anamatra.

[5]OIT. C100 - Igualdade de Remuneração de Homens e Mulheres Trabalhadores por Trabalho de Igual Valor. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235190/lang--pt/index.htm.

[6]BRASIL. Decreto nº 41.721/1957. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D41721.htm

[7]OIT. C11 - Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang--pt/index.htm.

[8] BRASIL. Decreto nº 62.150/1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D62150.htm.

[9]OIT. C156 - Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores com Encargos de Família. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242709/lang--pt/index.htm.

[10]OIT. C155 - Segurança e Saúde dos Trabalhadores. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236163/lang--pt/index.htm.

[11]BRASIL. Decreto nº 1.254/1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1254.htm.

[12]NASCIMENTO, Sônia Mascaro. As ações da OIT para inibir o assédio moral. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-mai-28/acoes-oit-inibir-assedio-moral-coletivo-trabalho.

[13]ILO. New international labour standard to combat violence, harassment, at work agreed. Disponível   em: https://www.ilo.org/ilc/ILCSessions/108/media-centre/news/WCMS_711321/lang--en/index.htm.

[14]Com início em 2017, é o movimento contra assédio e agressão sexuais que teve seu início nas redes sociais, na esteira da queda do ex-produtor de cinema Hervey Weinstein, acusado de assédio e abuso sexual por mais de 80 mulheres. Sobre o tema: BBC. #MeToo: a hashtag que expõe a magnitude mundial do assédio sexual. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41652306.

[15]EL PAÍS. Jovens, novos mártires do trabalho no Japão: agência foi multada pelo suicídio de funcionária que entrou em depressão por excesso de trabalho. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/06/internacional/1507291592_585199.html.

[16]G1. OIT aprova convenção histórica contra violência e assédio no trabalho. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2019/06/21/oit-aprova-convencao-historica-contra-violencia-e-assedio-no-trabalho.ghtml.

[17]ESTADÃO. Nova convenção da OIT acende alerta para o assédio moral. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/blogs/radar-do-emprego/nova-convencao-da-oit-acende-alerta-para-o-assedio-moral/.

[18]G1. Metade dos brasileiros já sofreu assédio no trabalho, aponta pesquisa. Disponível em: http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2015/06/metade-dos-brasileiros-ja-sofreu-assedio-no-trabalho-aponta-pesquisa.html.

[19]UNITED NATIONS, Guide to the Global Compact: A Practical Understanding of the Vision and Nine Principles, at http://www.unglobalcompact.org/irj/servlet/prt/portal/prtroot/com.sapportals.km.docs/ungc–html–content/ Public–Documents/gcguide.pdf, at 29

[20]ILO. Conventions and Recommendations. Disponível em: https://www.ilo.org/global/standards/introduction-to-international-labour-standards/conventions-and-recommendations/lang--en/index.htm.

Referências

ALSTON, Philip. Core Labour Standards and the transformation of the International Labour Rights Regime. Disponível em: https://academic.oup.com/ejil/article/15/3/457/374136.

ANAMATRA. OIT adota convenção internacional sobre violência e assédio no local de trabalho. Disponível em:  https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/28324-oit-adota-convencao-internacional-sobre-violencia-e-assedio-no-local-de-trabalho.

ANAMATRA. Prevenção do assédio no ambiente de trabalho é tema de palestra da presidente da Anamatra. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/28693-prevencao-do-assedio-no-ambiente-de-trabalho-e-tema-de-palestra-da-presidente-da-anamatra.

BBC. #MeToo: a hashtag que expõe a magnitude mundial do assédio sexual. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41652306.

BRASIL. Decreto nº 1.254/1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1254.htm.

BRASIL. Decreto nº 41.721/1957. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D41721.htm.

BRASIL. Decreto nº 62.150/1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D62150.htm.

CONFORTI, Luciana Paula e PORTO, Noemia Aparecida Garcia. Haverá ratificação? Disponível em: https://www.anamatra.org.br/images/DOCUMENTOS/2019/Agosto.NoemiaPortoLucianaConforti.pdf.

Convenção histórica da OIT contra violência e assédio no trabalho é aprovada. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI304909,91041-Convencao+historica+da+OIT+contra+violencia+e+assedio+no+trabalho+e.

DE MELO, Raimundo Simão. OIT aprova a Convenção 190, sobre violência e assédio no trabalho. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-12/reflexoes-trabalhistas-oit-aprovaa-convencao-190-violencia-assedio-trabalho.

EL PAÍS. Jovens, novos mártires do trabalho no Japão: agência foi multada pelo suicídio de funcionária que entrou em depressão por excesso de trabalho. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/06/internacional/1507291592_585199.html.

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OIT. C155 - Segurança e Saúde dos Trabalhadores. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236163/lang--pt/index.htm.

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