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13/04/2021

Vale-pedágio: você ainda vai ouvir falar sobre isso

Você já ouviu falar sobre o vale-pedágio obrigatório?

 

O tema é específico e suscita dúvidas até mesmo para quem atua com logística e com transporte rodoviário de cargas, o que também se constata nas decisões judiciais proferidas nas ações indenizatórias promovidas por motoristas autônomos e transportadoras de todos os portes.

A decisão do Supremo Tribunal Federal¹, em meados de 2020, julgando improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6031/DF e declarando constitucional o artigo 8º da Lei 10.209/01², tem intensificado o ajuizamento de demandas que visam à indenização decorrente do não adiantamento do vale-pedágio, o que é bastante preocupante, principalmente se não houver o correto enfrentamento, pelo Poder Judiciário, das questões fáticas e processuais que contornam o litígio, com análise acurada das especificidades envolvendo a relação entre as partes.

Prevê o aludido artigo 8º que, nas hipóteses de infração ao disposto na Lei 10.209/012, o embarcador será obrigado a indenizar o transportador em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete. É exatamente isso: uma vez não adiantado o valor do pedágio, o embarcador poderá ser condenado a desembolsar o montante equivalente à dobra do frete, ainda que tal valor – e geralmente assim o é – resulte muito maior que o montante do pedágio não adiantado.

Ocorre que, por vezes, ao ingressar com a ação, a parte autora inclui no polo passivo todos os sujeitos que participaram da relação comercial (contratante do frete, subcontratante, destinatário e remetente da carga), ainda que não sejam responsáveis diretamente pelo frete e demais custos do transporte e mesmo quando inexistente o vínculo jurídico. Infelizmente, não são poucas as decisões – de primeira e segunda instância – que aplicam a responsabilidade solidária, tipificando a solidariedade de forma equivocada. E aqui é necessária muita cautela na análise da relação jurídica.

O artigo 1º, § 1º da lei 10.209/01 estabelece que o embarcador será o responsável pelo pagamento do pedágio, sendo que o § 3º, por sua vez, equipara ao embarcador: “I - o contratante do serviço de transporte rodoviário de carga que não seja o proprietário originário da carga” e “II - a empresa transportadora que subcontratar serviço de transporte de carga prestado por transportador autônomo”.

Isso significa que, fora as hipóteses legais previstas, não há responsabilidade pelo pagamento do pedágio, equivocando-se aqueles que fundamentam o suposto direito à indenização na solidariedade prevista no artigo 5º-A, § 2º da Lei 11.442/2007³, na medida em que as obrigações impostas são distintas.

Enquanto a Lei 10.209/01 regula o vale-pedágio obrigatório, indicando expressamente a responsabilidade do embarcador por seu pagamento, a Lei 11.442/2007 dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas mediante remuneração, de modo que a solidariedade prevista no artigo 5º-A, § 2º é exclusiva para a obrigação relativa ao pagamento do frete. Logo, são obrigações distintas e não poderiam ser analisadas como se iguais fossem, até mesmo pelo fato de que o pedágio não integra o valor do frete.

Além disso, há questões específicas relacionadas à contratação originária que, igualmente, demandam atenção. Uma vez que o comprador e o vendedor pactuaram a responsabilidade pelos custos do transporte, tal disposição de vontades não pode – ou ao menos não deveria – ser ignorada. Há inúmeros contratos com previsão de aquisição ou venda com cláusula FOB e CIF, impactando diretamente na responsabilidade pelo adiantamento do pedágio e, em última análise, na indenização prevista no artigo 8º da lei 10.209/01.

Em linhas gerais e no que importa para esse artigo, a cláusula FOB (Free on board) estipula a responsabilidade do frete pelo comprador da carga, ao passo que a cláusula CIF (Cost, Insurance and Freight) estabelece que tal responsabilidade deve ser imputada ao vendedor da carga. Assim, o comprador de um determinado produto pode ou não ser responsável pelos custos do transporte e, de igual modo, o vendedor, a despeito de ser o proprietário da carga, pode ou não ser o contratante do frete.

Impende ressaltar que o vale-pedágio obrigatório foi instituído com o objetivo principal de proteger os caminhoneiros autônomos, desonerando o transportador do seu pagamento, conforme assegura a própria ANTT4, a quem compete a fiscalização e aplicação das penalidades administrativas, nos termos da Resolução nº 2.885/2008.

Na prática, porém, já é possível verificar o oportunismo praticado por muitos que se dizem detentores do direito à indenização, inclusive por parte daqueles que a lei não tinha a finalidade de resguardar, não sendo poucas as demandas ajuizadas e fracionadas perante os Juizados Especiais Cíveis, com clara intenção de pulverizar o risco e litigar sem custo. Por vezes, não há sequer apresentação de documentos comprobatórios dos fatos constitutivos do direito pleiteado e, ainda assim, o pedido é julgado procedente. Em muitas situações, constata-se, o tratamento concedido à parte autora se assemelha ao conferido ao consumidor nas relações de consumo, sendo suficiente a mera alegação do direito pleiteado, presumindo-se uma hipossuficiência e/ou vulnerabilidade que nem sempre se faz presente e promovendo-se uma inversão do ônus da prova sem qualquer previsão para tanto.

A razão para o crescente número de ações judiciais envolvendo o tema é evidente: o artigo 8º da Lei 10.209/01 acaba por incentivar o enriquecimento sem causa, dada a desproporcionalidade entre a obrigação principal (pedágio) e a indenização (dobra do frete). E é justamente por esse motivo que a declaração de constitucionalidade do artigo 8º pelo Supremo Tribunal Federal causou perplexidade, pois a intenção de proteger a parte vulnerável da relação se esvazia quando constatado o desvio da finalidade pretendida pela lei.

No entendimento do Supremo Tribunal Federal, o legislador optou por estabelecer dupla penalidade pelo não pagamento do vale-pedágio: uma administrativa e uma indenizatória, as quais não se confundem e são destinadas a beneficiários diversos. Também assegurou que a Lei 10.209/01 é especial, prevalecendo no caso de antinomias existentes contra a lei geral (Código Civil, na espécie), inexistindo conflito entre os princípios constitucionais.

Até o julgamento da ADI 6031/DF, havia tendência de os tribunais julgarem a questão em conformidade com o entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça que, no julgamento do Recurso Especial nº 1.520.327, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, decidiu pela redução do valor da indenização prevista no artigo 8º, com fundamento no disposto nos artigos 412 e 413 do Código Civil.5

Assim, as decisões proferidas nas ações envolvendo o tema – ou grande parte delas – limitavam a indenização ao valor do pedágio ou utilizavam o próprio valor do pedágio como parâmetro para a indenização, em analogia à regra da cláusula penal, segundo a qual o valor da cominação imposta não pode exceder ao da obrigação principal, sendo lícita a redução pelo juiz quando verificado o excesso ou, ainda, levando em consideração a previsão normativa no sentido de que a indenização mede-se pela extensão do dano (artigo 944 do Código Civil).

Todavia, de acordo com o entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal, o artigo 8º da lei 10.209/01 impõe penalidade que não pode ser disposta livremente pelas partes, “tratando-se de cláusula penal imposta por lei, com valor determinado pelo legislador, sem qualquer interferência dos particulares”.

A despeito de o Supremo Tribunal Federal ter dado o desfecho à questão de direito material atinente ao enriquecimento sem causa, as questões de direito processual permanecem inalteradas, sendo da parte autora o ônus de demonstrar o valor devido em todas as praças de pedágios existentes na rota da viagem contratada e a exclusividade do transporte, conforme asseverado em recente – e relevante – acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.6

Logo, nem tudo está perdido.

Daí a razão pela qual, mais do que nunca, é de extrema importância que as empresas que se utilizam do transporte rodoviário de cargas adequem-se à legislação vigente, contingenciem todos os riscos provenientes do não adiantamento do vale-pedágio – ainda que afetadas indiretamente – e busquem munir-se de documentos, precavendo-se de futuras e eventuais demandas judiciais, com vistas a comprovar a ausência de responsabilidade e/ou inexistência de solidariedade, notadamente considerando o impacto financeiro que a condenação à indenização pode acarretar.

Conforme verificado, há inúmeros pontos que deverão ser enfrentados pelo Poder Judiciário ao se deparar com ações judiciais que contemplem a matéria, cuja complexidade se mostra evidente, dentre os quais podem ser citados, a título exemplificativo: quitação do pedágio mediante reembolso, trajeto efetuado (ida e/ou volta), transporte fracionado, modalidade de frete, exclusividade na prestação do serviço, boa-fé na relação contratual e os seus desdobramentos, ônus da prova etc..

A constitucionalidade do artigo 8º não implica no reconhecimento do direito, mas apenas mantém a norma no sistema jurídico. Como em qualquer demanda judicial, o caso concreto deve ser analisado em suas especificidades, competindo às partes, também à luz do princípio da cooperação, elucidar o tema e fornecer substratos que permitam o correto deslinde do litígio. Ao Poder Judiciário, compete a subsunção do direito aos fatos e repressão de práticas oportunistas e eivadas de má-fé.

Diante de tanta polêmica que envolve a questão, somada à conflitante jurisprudência atual, certamente você ainda vai ouvir falar muito sobre o vale-pedágio obrigatório...

 

Flávia Tiezzi Cotini de Azevedo Sodré Advogada Sênior – Pereira Pulici Advogados

 

1 STF – ADI 6031DF – Relatora Ministra Cármen Lúcia - j. 27.03.20 - DATA DE PUBLICAÇÃO DJE 16/04/2020 - ATA Nº 49/2020. DJE nº 90, divulgado em 15/04/2020 – trânsito em julgado em 03/07/2020 – disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5564645 – acesso: 03.11.20
2 Art. 8º Sem prejuízo do que estabelece o art. 5º, nas hipóteses de infração ao disposto nesta Lei, o embarcador será obrigado a indenizar o transportador em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete
3 Art. 5o-A. O pagamento do frete do transporte rodoviário de cargas ao Transportador Autônomo de Cargas - TAC deverá ser efetuado por meio de crédito em conta mantida em instituição integrante do sistema financeiro nacional, inclusive poupança, ou por outro meio de pagamento regulamentado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT, à critério do prestador do serviço. (Redação dada pela Lei nº 13.103, de 2015) (Vigência)
   § 2o O contratante e o subcontratante dos serviços de transporte rodoviário de cargas, assim como o cossignatário e o proprietário da carga, são solidariamente responsáveis pela obrigação prevista no caput deste artigo, resguardado o direito de regresso destes contra os primeiros.

4 https://portal.antt.gov.br/vale-pedagio-obrigatorio - acesso - 30.10.2020
5 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. / Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
6 STJ - REsp 1.714.568 / GO – Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, j. 08.09.20

 

 

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